segunda-feira, 4 de julho de 2011

Sangue Atroz (Parte IV)

por Dragomir Kephas
ilustração: Daniel Gonçalves


Agosto de 1829, vila de Curitiba, comarca do Paraná. Cheguei a essa terra de ninguém faz dois dias e já sequei três corpos. Na província de São Paulo tudo transcorria bem, mas não sou do tipo que se acomoda. Além disso, o lugar é muito quente, faz mal para a minha pele, que é o meu ganha-pão. Você se aproximaria de alguém alto, pálido, cheio de pústulas e manchas negras pela face, tal qual um cadáver em putrefação? Acredito que não. Portanto, pelos ossos do ofício, eu vim para cá.
Pela manhã algumas ruas cheiram a pão caseiro. Não como pão, mas aprecio o cheiro, assim como aprecio o aroma de um bom café. Esse eu faço questão de degustar, aos poucos, porque me faz muito mal, mas é irresistível. Devo ter herdado esse vício da minha vida anterior, pode ser. Não recordo de nada. Minha lembrança mais remota é a de ter despertado em uma pilha de cadáveres, coberto de cal, na escuridão da noite. Removi alguns corpos de cima de mim e saí caminhando, com um buraco no estômago - no sentido figurado, devo esclarecer.
As pessoas na rua me olhavam com um misto de aversão e perplexidade, do peito para cima eu estava branco de cal, dessa marca para baixo, vermelho de sangue. Parei na frente de uma confeitaria, um cheiro no ar instigava meu apetite. Olhei para a vitrine repleta de guloseimas e percebi que nada daquilo me satisfaria. Entendi que o que me afligia era sede, uma sede diferente, que doía no estômago, mas era sede. Continuei andando e progressivamente meus sentidos se aguçaram, tornaram evidente o caminho que eu deveria seguir para chegar à fonte daquela fragrância. Atravessei uma viela escura, desprovida das lamparinas que parcamente iluminavam as ruas principais, parei na esquina e avistei três garotas em uma conversa animada, ombros à mostra e cigarrilha entre os dedos. Da ruiva emanava aquele aroma de canela e fruta cítrica, inebriante. Dei dois passos em sua direção, mas me contive ao recordar de minha aparência. Voltei para o beco e mergulhei no bebedouro dos cavalos - agora sim, eu estava ridículo. Tirei as roupas e as torci, a camisa branca estava sem manchas de sangue, graças à gandola que eu trajava. Procurei me recompor da melhor maneira possível, lavei meu rosto e joguei os cabelos para trás - foi quando eu senti os dois orifícios no meu pescoço.
            Voltei para a esquina e só havia duas garotas, felizmente uma delas era a ruiva. Aproximei-me e, com alguma lábia, convenci a bela a sair dali de braços dados comigo, rumo ao quarto alugado que o cafetão da moça mantinha à disposição da freguesia.
            Impossível esquecer aquela mulher. Entre lençóis, onde fica o único paraíso que conheço, a magnífica Valquíria estranhou a falta de calor do meu corpo, mas nem por isso deixou de se entregar. Sentindo o gosto da sua pele alva e apreciando a beleza desvelada daquele corpo, só percebi o que fazia quando sobre mim jazia um cadáver. Foi tudo rápido, instintivo, alheio ao meu controle.
            Saí do quarto apressado, deixando o cafetão com todo o prejuízo.
            Retomando o início da conversa, eu discorria sobre Curitiba, da qual eu já tinha boas referências com relação ao clima e a paisagem, mas resolvi conferir de perto ao ficar sabendo das notícias de violência e desordem em seus arredores. Um lugar mal frequentado sempre facilita a camuflagem, ainda mais com tantos comerciantes de passagem pela vila e poucas autoridades para dar conta do recado. O cenário ideal.
            Instalei-me em uma residência próxima ao pelourinho, de propriedade de um tal Dom Blasco, que, ouvi dizer, é dono da metade dos imóveis da região. Só que o grã-fino está fora da vila há anos, por isso tratei do aluguel com um de seus empregados, um advogado que parece estar usufruindo muito bem da ausência do patrão.
            Agora que estou bem instalado nesse recanto tão promissor do Brasil, me deparo com uma intriga do destino, uma constatação que me perturba profundamente. O odor dessa casa em que estou vivendo - é o meu. O meu cheiro, impregnado nas paredes, no assoalho, nas portas e corrimãos. O odor rançoso de um morto-vivo, que até hoje eu havia sentido somente em minhas próprias roupas e que me esforço para disfarçar com as colônias que trouxe da Europa. Veja, não sou nenhum aristocrata, sequer possuo empregados. Também não me considero um sujeito vaidoso. Ter boa aparência para mim é uma questão de sobrevivência e um aroma agradável faz parte desse ardil. De maneira que não posso estar enganado, esse odor desprezível que exalo estava aqui desde o primeiro dia em que adentrei essas portas. Esse é um enigma que não pretendo deixar sem resposta.


(continua...)

2 comentários: