domingo, 10 de julho de 2011

Editorial #127

por Daniel Gonçalves
Certa vez, aos 14 anos de idade, eu vasculhava volumes de enciclopédia na Biblioteca Pública do Paraná quando me deparei com um livreto oculto entre os tomos. Uma publicação confeccionada artesanalmente, em um formato bastante próximo desse que você leitor está folheando. Cheirava à naftalina. A capa de papel pardo trazia em caracteres desgastados o título LODO n° 17 com as letras “o” substituídas por caveiras.
            Na primeira página o título anunciava lobisomens e carnificina e as linhas datilografadas desdobravam-se viscerais e empolgantes. Foi quando um sujeito de aparência bizarra parou no corredor e ficou me encarando. Sentindo-me incriminado por estar lendo aquela selvageria, fechei o volume de enciclopédia abruptamente com a LODO em seu interior e sepultei-a novamente na prateleira. Temendo pela minha segurança, saí daquele lugar apressado e, como é de praxe nesses casos, nunca mais consegui encontrar a obscura publicação.
            Recentemente, logo após o lançamento da 1ª edição da revista LAMA, recebemos um e-mail de Florestano Boaventura, que se identificou como idealizador da revista LODO. No contato ele nos parabenizava pela LAMA e dizia que gostaria de contribuir cedendo os textos já publicados em seu periódico, que era de circulação muito restrita, segundo suas palavras.
            Você, leitor, pode imaginar nossa surpresa e excitação, pois o próprio nome LAMA foi uma homenagem a essa mítica publicação. Desde então, Florestano passou a nos enviar material, imagens digitalizadas de páginas datilografadas e manuscritas. Contos assinados pelos próprios protagonistas das histórias, em sua maioria.
            Para nós, da LAMA, pareceu crucial preservar a experiência de ler a LODO da maneira como ela foi concebida originalmente. O mesmo conceito, a mesma formatação e a transcrição fiel e integral dos textos. Para não desapontar nosso misterioso colaborador, reformulamos a identidade visual da revista e acrescentamos ilustrações aos contos. Todavia, o que vale aqui é a documentação desse universo extraordinário, outrora inacessível ao grande público.

LAMA


O LODO é um fanzine agregado à LAMA.
A LAMA é uma revista de literatura pulp brasileira. Reúne contos de terror, suspense, realismo fantástico e ficção científica. Histórias repletas de criaturas, psicopatas, vampiros e detetives.
O título pulp ou pulp fictions se deu na década de 20 para chamar as revistas impressas em papel de má qualidade e vendidas por alguns centavos. As pulps eram principalmente consumidas, nos Estados Unidos, por trabalhadores emigrantes que vinham do campo para a cidade. Revistas baratas para se carregar no bolso da calça jeans. Vários escritores famosos como Isaac Asimov, Dashiell Hammett e Raymond Chandler começaram nas pulps
Para saber mais sobre a LAMA: www.revistalama.com.br  



PONTOS DE VENDA

CURITIBA
Livraria Arte & Letra - Rua Pres. Taunay, 40 - dentro do Lucca Cafés Especiais - Batel
Fnac - Shopping Barigüi
Café Quintana - Avenida Batel 1440, Batel

SÃO PAULO
Livraria Cultura - Market Place Shopping Center, Conjunto Nacional (Av.Paulista 2073) e Shopping Villa Lobos

BRASÍLIA 
Livraria Cultura - CasaPark Shopping Center


- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 
Enviamos também por correio.
Email para contato: info@revistalama.com.br 

segunda-feira, 4 de julho de 2011

LODO Nº 127

Se você deseja a edição impressa nº 127 da LODO, mande-nos um email para: info@revistalama.com.br. Mandamos via correio! Colecione!





Espalha Esperma (Parte 1)

por Detetive Linhares
ilustração: Daniel Gonçalves

Cheguei perto da porta. Cheiro de sangue. Do outro lado gemidos de uma voz jovem. Tentei escutar mais algum barulho. Nada. Saquei a Jéssica. 1, 2, 3. Arrombei a porta. A cena não era das mais agradáveis, mas ainda tinha solução. Uma menina de aproximadamente doze anos estava jogada em um sofá, seminua. Uma janela do seu lado direito estava aberta e a cortina esvoaçava.
- O cretino fugiu.
Antes de dar atenção à moça dei uma rápida revistada na casa. Ninguém.
- Você está bem?
Eu sei que é uma pergunta cretina para o momento, mas me ajuda a saber como estão os sinais vitais da menina.
- Humm...minha...
- Não fale nada, menina. Eu sou detetive e vou te levar prum hospital.
Ela tinha alguns cortes pelo corpo. Coisa de profissional. O cara não a esfaqueou. Fez o sangue escorrer prela ficar lesada. Havia um corte no braço, um na barriga, na altura do rim, um no pescoço e um na panturrilha. Ela estava pálida. Liguei para o Siate. Estanquei os cortes. Por sorte ele ainda não havia penetrado a moça. Havia algumas escoriações na região da vagina, mas, de fato, nada havia acontecido. Cobri-a com um cobertor. O Siate chegou em cinco minutos.
- Detetive Linhares.
- Tenente Carlos.
- Alguma coisa?
- O cara deve ter fugido pela janela quando me ouviu chegar. Ela está com cortes e o cretino tentou estuprá-la.
- Mas vai ficar bem. Já tem pistas do cara?
- Pelos cortes é o Espalha Esperma. Ele deixa a vítima lesada, sem força para reagir, e depois a estupra.
- Coisa de profissional.
- Ele tem algum problema com bucetas. No final o cretino costura e cauteriza os grandes lábios da moça pra que ela não trepe com mais ninguém.
- Caralho!
- Crime de ódio.
Deixei os médicos cuidarem da menina e fui até o Distrito falar com o Chefe Tavares.
- Ela está bem.
- E o estuprador?
- É o Espalha Esperma. Vou achá-lo. Conheço uma menina que foi atacada por ele.
- Ele não tem ficha. Como você sabe?
- A sala estava com o cheiro do safado. Preciso de três dias.
- Feito. Três dias. Depois disso vou acionar o Delegado Mendes.
Saí do Distrito e fui encontrar a menina que foi estuprada pelo Espalha Esperma. Passei numa padoca e peguei um café duplo. Era final de tarde. Ela devia estar indo pro trabalho.
Passei no ponto dela e nada. Mas o patrão já estava na rua.
- Cadê a Taty?
- Detetive Linhares, quanto tempo? Querendo diversão?
- Deixa esse sotaque ridículo de carioca de lado e me diz onde tá a moça.
- Não chegou ainda, detetive. Não sei se ela vai te atender. Ela tem um cliente agendado para as sete horas.
- Não perguntei o que ela vai fazer. Cadê a Taty?
Disse e fui descendo do carro. Comecei a ficar puto com a falta de colaboração do cretino.
- Calminha aê, detetive. Ela já deve tá chegando. Guenta aí. Dez minutinhos.
Eu não sei donde esse bosta tirou esse sotaque ridículo. Encostei no capô do Inércia e esperei. Odeio esperar. Fico irritado. Saquei o vidrinho e mandei uma pra acalmar.
- Tá afim?
- Aêê, detetive. Mandô bem, hein! Uma cafungadinha pra começá os trabalhos não é nada mal.
O cara abaixou a cabeça pra cheirar e eu preguei sua cara contra o carro.
- Escuta aqui, seu cretino! Larga mão desse jeitinho idiota de falar comigo ou eu vou quebrar teu crânio em mil pedaços! Tá me entendendo?
- Porra, detetive. Qualé? Tô querendo ajudá! Faz isso, não!
Larguei o cara no chão.
- Não mete o nariz onde não é chamado, seu bosta!
- Ei, ei! Que tá acontecendo aqui? Para com isso, detetive!
A Taty chegou correndo e foi logo tratando de socorrer o seu comparsa (marido, gigolô, traficante, etc...).
- O nariz dele tá sangrando!
- Entra no carro.
- O que você qué? Uma chupadinha pra baixá o facho? Hein?
- Taty, cala a boca e entra duma vez!
- Vai com ele, Taty. Ele tá doidão.
Entramos no carro e fomos dar uma volta.
- Tô procurando o Espalha Esperma. Cê sabe alguma coisa?
- Você sabe que eu não gosto de falar sobre isso.
- Ele atacou uma menina de doze anos e eu vou arrancar a pele dele. Então é bom você começar a abrir a boca.
- Olha aqui, detet...
- Olha aqui o caralho! Esse cara não vai mais arrebentar ninguém! Cê tá me ouvindo? Fala duma vez, porra! Não fica me enrolando que eu não tenho a vida inteira!
Ela respirou fundo e se acalmou. Acendeu um cigarro. Dei uma carreirinha pra ela. Ela se animou.
- Eu vi ele no Blue Velvet quarta-feira. Tava pegando uma guria lá.
- Como era essa guria?
- Baixinha, cabelo vermelho. Devia ter a minha idade. Bem bonitinha ela. Rostinho angelical, hehe. Carinha de quem não conhece o Blue. Não imagino o que uma ninfeta daquela faz num bar como esse.
- Foda-se o que ela tava fazendo lá. Quero saber pra onde eles foram, quem é essa menina, qual é a porra da ligação dos dois!
- Calma, detetive. Comé que eu vô sabê disso?
- Sei lá, caralho! Ela deve ser a próxima vítima dele.
- Você não tá nem aí, né? Quando eu vi o safado lá fui embora do bar. Ainda tenho medo dele. Mas a Frida diz que viu ele saindo com essa guria e entrando num carro branco.
- Pegô a placa?
- Claro que não, detetive! Você tá loco! Porque alguém ia ficar anotando placa de carro?
- Porque o cara é um assassino sangue-frio e vai matá mais gente enquanto eu não fudê com a vida dele! Que caralho! Vocês vivem em que mundo, hein?
Parei o carro próximo à Praça Osório.
- Desce.
- Eu não trabalho aqui hoje.
- Desce, porra!
- Seu veado!
Ela desceu a contragosto. Ficou me xingando. Eu saí e fui até o tal bar dar uma averiguada.

(continua...)

Sangue Atroz (Parte IV)

por Dragomir Kephas
ilustração: Daniel Gonçalves


Agosto de 1829, vila de Curitiba, comarca do Paraná. Cheguei a essa terra de ninguém faz dois dias e já sequei três corpos. Na província de São Paulo tudo transcorria bem, mas não sou do tipo que se acomoda. Além disso, o lugar é muito quente, faz mal para a minha pele, que é o meu ganha-pão. Você se aproximaria de alguém alto, pálido, cheio de pústulas e manchas negras pela face, tal qual um cadáver em putrefação? Acredito que não. Portanto, pelos ossos do ofício, eu vim para cá.
Pela manhã algumas ruas cheiram a pão caseiro. Não como pão, mas aprecio o cheiro, assim como aprecio o aroma de um bom café. Esse eu faço questão de degustar, aos poucos, porque me faz muito mal, mas é irresistível. Devo ter herdado esse vício da minha vida anterior, pode ser. Não recordo de nada. Minha lembrança mais remota é a de ter despertado em uma pilha de cadáveres, coberto de cal, na escuridão da noite. Removi alguns corpos de cima de mim e saí caminhando, com um buraco no estômago - no sentido figurado, devo esclarecer.
As pessoas na rua me olhavam com um misto de aversão e perplexidade, do peito para cima eu estava branco de cal, dessa marca para baixo, vermelho de sangue. Parei na frente de uma confeitaria, um cheiro no ar instigava meu apetite. Olhei para a vitrine repleta de guloseimas e percebi que nada daquilo me satisfaria. Entendi que o que me afligia era sede, uma sede diferente, que doía no estômago, mas era sede. Continuei andando e progressivamente meus sentidos se aguçaram, tornaram evidente o caminho que eu deveria seguir para chegar à fonte daquela fragrância. Atravessei uma viela escura, desprovida das lamparinas que parcamente iluminavam as ruas principais, parei na esquina e avistei três garotas em uma conversa animada, ombros à mostra e cigarrilha entre os dedos. Da ruiva emanava aquele aroma de canela e fruta cítrica, inebriante. Dei dois passos em sua direção, mas me contive ao recordar de minha aparência. Voltei para o beco e mergulhei no bebedouro dos cavalos - agora sim, eu estava ridículo. Tirei as roupas e as torci, a camisa branca estava sem manchas de sangue, graças à gandola que eu trajava. Procurei me recompor da melhor maneira possível, lavei meu rosto e joguei os cabelos para trás - foi quando eu senti os dois orifícios no meu pescoço.
            Voltei para a esquina e só havia duas garotas, felizmente uma delas era a ruiva. Aproximei-me e, com alguma lábia, convenci a bela a sair dali de braços dados comigo, rumo ao quarto alugado que o cafetão da moça mantinha à disposição da freguesia.
            Impossível esquecer aquela mulher. Entre lençóis, onde fica o único paraíso que conheço, a magnífica Valquíria estranhou a falta de calor do meu corpo, mas nem por isso deixou de se entregar. Sentindo o gosto da sua pele alva e apreciando a beleza desvelada daquele corpo, só percebi o que fazia quando sobre mim jazia um cadáver. Foi tudo rápido, instintivo, alheio ao meu controle.
            Saí do quarto apressado, deixando o cafetão com todo o prejuízo.
            Retomando o início da conversa, eu discorria sobre Curitiba, da qual eu já tinha boas referências com relação ao clima e a paisagem, mas resolvi conferir de perto ao ficar sabendo das notícias de violência e desordem em seus arredores. Um lugar mal frequentado sempre facilita a camuflagem, ainda mais com tantos comerciantes de passagem pela vila e poucas autoridades para dar conta do recado. O cenário ideal.
            Instalei-me em uma residência próxima ao pelourinho, de propriedade de um tal Dom Blasco, que, ouvi dizer, é dono da metade dos imóveis da região. Só que o grã-fino está fora da vila há anos, por isso tratei do aluguel com um de seus empregados, um advogado que parece estar usufruindo muito bem da ausência do patrão.
            Agora que estou bem instalado nesse recanto tão promissor do Brasil, me deparo com uma intriga do destino, uma constatação que me perturba profundamente. O odor dessa casa em que estou vivendo - é o meu. O meu cheiro, impregnado nas paredes, no assoalho, nas portas e corrimãos. O odor rançoso de um morto-vivo, que até hoje eu havia sentido somente em minhas próprias roupas e que me esforço para disfarçar com as colônias que trouxe da Europa. Veja, não sou nenhum aristocrata, sequer possuo empregados. Também não me considero um sujeito vaidoso. Ter boa aparência para mim é uma questão de sobrevivência e um aroma agradável faz parte desse ardil. De maneira que não posso estar enganado, esse odor desprezível que exalo estava aqui desde o primeiro dia em que adentrei essas portas. Esse é um enigma que não pretendo deixar sem resposta.


(continua...)

Três Beijos

por Fúlvio Lopes
ilustração: Daniel Gonçalves
Marcela. Sobrevive-se. Assim temos a certeza de que o dia de ontem existiu. Mamá minha. E também porque ele continua aqui na minha frente. Às vezes me olha pelo aquário de acrílico, como que me pressentindo, já que de dentro para fora o aquário é espelhado. Mamá. Se ao menos Fúlvio Lopes conhecesse meu nome. Ou houvesse me dado um apelido, algo a que se apegar. Mas não. Mãe. Fúlvio Lopes também teve a sua. A mãe lhe cobrava que estudasse. Ele não gostava de estudar. Fingia ir para escola, ia a pé, sozinho, não titubeava em desviar o caminho e sumir o dia inteiro. Clareira perto da estrada galinhas um jegue vacas o verde das pastagens. Voltava para casa sempre com a boca suja de terra. São dados que levantei com o Detetive Linhares. Agora ele está comendo bem. Sua alimentação é balanceada. Ele mesmo se serve. O estoque é reposto uma vez por semana. Às vezes Lopes acaba com o estoque rapidamente e fica sem alimento até a data da reposição. Enquanto ele não aprender, terá de ficar aqui. O freezer foi uma conquista sua. A manutenção dos alimentos, para que durem a semana toda, é o seu próximo passo. Carne, carne e mais carne. Gina´s Beef  churrasco  karaokê e pó como era mesmo aquela do Odair José? Gina´s Beef vodu e carne humana no cardápio vou até o banheiro lavo as mãos três vezes mijo lavo as... É só o que come. Está em frente ao freezer agora. Com dificuldade o abre. Tira uma garrafa presa no gelo. Destampa. Bebe metade do líquido transparente no gargalo. Volta a tampar a garrafa. Fecha o freezer. Chacoalha a cabeça. Deita-se. Mãos mais três vezes sempre lavo as mãos três vezes isso é um problema me atrasa a vida dou com a testa no espelho vamos embora por quê? quero ir oi Inércia bem cuidado bróder fico puto com quem céu escuro... Hoje Lopes conseguirá ainda dormir por horas, mas logo não será mais assim. No porão aqui de casa que o tranquei. Chamo o lugar de Aquário por falta de criatividade, além do mais Lopes não é nenhum peixe, isso é óbvio. Ele não me escuta, nem me enxerga. Faz sete dias que Lopes está aqui, o tempo da lua cheia. Relâmpagos assobia pra chamar os outros eu também não sou cachorro pois é vamos acabar com esses paspalhos, Lufus par ou ímpar pra ver quem atira primeiro empatou doze cuidadores de carro executados na mesma noite esse aqui diz que não é cuidador o que a gente faz com ele, Linha? parafusa hahahahahaha. Sete dias de alucinações, de imagens de seu inferno pessoal. A quantidade de moscas que há ao redor dele sempre que acorda. Pelos grossos começam a tomar seu corpo todo, o rosto. As unhas estão crescendo, endurecendo, são marrons, duras. A pele estica. Os animais com garras têm medo de se coçar. Lopes tem a pele ferida. As moscas não o respeitam, possivelmente porque não compreendem sua linguagem, seus gestos não conclusivos, seu olhar de “não se aproxime.” A galeria dos olhares de Lopes: não se compadeça, piedade, aqui ó, pra você. Falo do olhar de Fúlvio Lopes, o detetive que foi atacado por um lobisomem e está aqui em minha casa aprendendo como dominar o monstro em que passará a se transformar agora em noites de lua cheia. Ele é atormentado. Delira. Revolta-se. Dói nele. Ao contrário do que se pensa, a transformação é lenta, pode chegar a mais de duas horas até completar o seu ciclo. A dor é lancinante. Mas Lopes é visita, digo ao seu parceiro Linhares, que provavelmente é a única pessoa no mundo que se preocupa com ele. Lopes não se aliou a mim. Para ele sou uma sombra, estou e não estou, dependendo de como incide a luz. Pergunto-me, é o que faço com insistência, perguntar-me. O que dizer a propósito da ênfase que têm os licantropos para mim. Essa é uma questão. Lopes é uma questão. É a vez dele estar aqui no Aquário, onde já eduquei mais de quinze homens-fera. Sou um enfermeiro confuso. A princípio, sendo eu mesmo um desses bichos, não estou em busca de fugas. Inércia nosso Santana Quanto 93 na fitinha Derruba Delinquente lado A Bob Dylan Johnny Cash lado B La Carne Velhas Virgens Marcela Mamá minha Mamá o Espalha Esperma  pegou a garota errada Linhares falando durante a viagem meu único negócio paralelo são as duas pensões que tenho que pagar pras minhas ex-mulheres a única vantagem de ter ex-mulher, Lufer é que uma vez por mês quando você vai levar o dinheiro da pensão na casa dela você pode fodê-la outra vez hahahahahahahaha mas ela casou de novo e mesmo assim toda vez que vou lá a gente mata a saudade matar a saudade nesse caso é... Fúlvio Lopes, sua condição de agora me obriga a mantê-lo aqui. É para seu próprio bem. Você está seguro, acredite. Você não é um degradado. E eu? Que paz, a interior? Deem-me cólera, não me deem paz, é o que todos os homens-lobo desejam no começo. Continuar pensando assim é que os faz ser amaldiçoados ao longo da vida. Mas a maioria dos lobos-humanos que treinei não são diferentes, só matam animais, e para sobreviver. Meu nome é Florestano Boaventura. Sou apenas o ouvinte de Lopes. Seu psicólogo. Não disputo. Não discuto. Cuido dele? Em termos. Eu o observo. Tão somente uma orelha e dois olhos, o que sou. Um pouco exorcizar na trepada a raiva que eu tenho dela e ela tem de mim eu já falei pra Janice se o maridão me encher muito o saco arranco um pé dele com uma serra elétrica aquele magrelo filho da puta cheio de espinha Linhares fala mais que o homem da cobra... Lopes não consegue dormir. Delira o pobre. A febre da maldição que o tocou. Fecha as pálpebras e prossegue ligado feito uma lâmpada no abajur. A vacina, hora da medicação, ele mesmo a aplica em seu bíceps. Sem ela, como pegará no sono? Ele baba anestesiado. Tento poções, remédios, rituais que possam amenizar a transformação, ou ao menos mantê-la sob controle, mas tudo é em vão, dada a fúria interior que Lopes engendrou ao longo da vida. Quando um homem se torna uma estupidificada besta, seu instinto primitivo, que não é nada apropriado, assume o controle. A raiva. A raiva é fatal sem tratamento. A raiva provoca agitações noturnas. Guaíra clareira perto da estrada galinhas um jegue vacas o verde das pastagens do Norte do Paraná céu escuro relâmpagos Guairá o néon da placa sempre falhado Montanha Drinks nunca bebo álcool a gangue fala outra língua deve ser latim não é latim é latido, hahahahaha Linhares dá uma estilingada de mamona na boca do Fala Fina me falaram que o Espalha Esperma tem parafuso a menos na cabeça hahahahaha temos que consertar isso... Não posso deixar que ele saia por aí e promova carnificinas. É já a sétima noite. Linha, a gente mata ou não mata? Desculpa tô ocupado agora deixa a... À medida que a noite vai caindo e a lua assumindo seu ápice, os dentes de Lopes vão crescendo, estouram as gengivas, que sangram. Namorada do otário  acabar o boquete em mim e já decido um tempo e então matamos ou não matamos? beijotchau, Lufus... Os caninos se tornam protuberantes. As veias grossas saltam. A orelha crescida, pontuda. Os olhos escuros, sensíveis à luminosidade. Ele fala beijotchau e eu entendo bestial puxo a Jerusa Jerusa com J batizei ela de Jerusalém quando uns caras de Israel deram um curso pra gente em Curitiba então puxo... Seus ossos entortam, alongam-se violentamente e mudam de forma, movendo-se e arrebentando a pele de Lopes. Os músculos incham. Ele fica corcunda. As mãos viram patas e puxo puxo puxo o gatilho três parafusos na cabeça sempre dou três tiros depois três beijos na medalha uma ferradurinha que trago pendurada três é meu número da sorte deixo a menina da chupeta viva nunca mato mulher nem... Ele acaba de me surpreender pelas costas. Como conseguiu sair do Aquário? Avançou sobre mim enquanto eu me preparava para sair à caça pelas chácaras de São José dos Pinhais e adjacências. Pare com isso, Lopes, eu gritei, devo ter gritado. Ele é muito mais forte e selvagem que eu. Estou velho e a vida intelectual sedentária que levo me fez perder os instintos assassinos. As presas de Fúlvio Lopes são enormes, ele é um dos maiores lobisomens que já conheci. Se não continuar com seu aprendizado, a sociedade estará em risco. E então a patada. Um, dois, três golpes. Os lanhos em meu corpo de fera cansada. Agora não estou mais vendo Lopes. Ele fugiu. Aterrorizará seu próprio futuro. Criança Linhares leva um tiro de raspão na coxa da própria lambedora tenho que dirigir de volta detesto dirigir não sei dirigir. Não sei para onde vai, nem quão longe. Eu, o mestre de tantos homens atacados pelo poder da lua, nesse momento não passo de mingau peludo, rubro e pegajoso, ardendo em febre e dor, estendido no fundo do Aquário que eu mesmo construí.