segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Lobisomem do Uberaba (Parte 1)

por Florestano Boaventura
ilustração: Daniel Gonçalves 

            O lobisomem do Uberaba sou eu. Vivo a mais de quarenta anos aqui no bairro.  Eu não sou o único, porém se você perguntar a qualquer pessoa nas redondezas, eles só vão lembrar de mim. Vão te confirmar que eu sou o lobisomem do Uberaba. Outros aqui foram tocados pela maldição, porém vivem feito animais por aí, escondidos nos matagais, caçando nas margens do Rio Belém, alimentando-se de zumbis andarilhos. O Uberaba está dominado pelo tráfico, infelizmente, como outros bairros da cidade. Apodrecendo de dentro pra fora. Zumbis do crack vagam pelas ruas à noite e são vítimas fáceis. No começo o “Ubera” era uma vila pacata, lembro-me como se fosse hoje. Só o clube Nikkei trazia pessoas para estes lados. Uma paz oriental absoluta. Hoje a cidade cresceu e nem o aeroporto Afonso Pena está tão longe mais. Mesmo assim ainda gosto daqui, conheço todo mundo. O pessoal da Magia do Pão, o padre da igreja São Paulo, os freqüentadores do clube dançante Bola de Ouro... Acostumei com eles e eles se acostumaram comigo. Virei até personagem. Os garotinhos da escola Alfredo Parodi prestam homenagem todos os anos. Fazem desenhos, histórias em quadrinhos, tiram foto. Uma vez por ano, em noite de lua cheia, eu vou até lá e participo da festa junina. Sou o lobisomem que ataca o noivo no momento do casamento, depois levo tiro do pai do sujeito. É bem divertido! O centro tem o Oilman e o Uberaba me tem. Conquistei a liberdade de sair transformado, de vez em quando. Posso descer numa boa até a Salgado Filho pra comer um prensado ou beber uma gelada no Armazém Santana. As pessoas gostam de mim, não sentem mais medo. Sabem que não saio mordendo ninguém. Não troco um bom churrasco por um pescoço duro nem a pau. Os tempos são outros, meus dentes andam frágeis, mas na real ainda vejo o Uberaba como a vila serena de outrora. Acostumei com o som rasante dos aviões, voando baixo em noites de céu aberto como a de hoje – noite atípica, sem bruma.

Estou sentado na minha mesa de trabalho habitual. Escrevo numa velha Remington, iluminado pela luz da lua cheia que invade a sala pela janela. O vento sopra em rajadas violentas, balançando a placa da coca-cola da padaria perto de casa. Meus sentidos ficam ainda mais aguçados quando estou transformado. O uivo do vento me é inspirador. Não tenho nada contra tecnologia ou computadores, é que gosto do som das teclas das máquinas de escrever. Tá bom, admito que sou um velho lobo nostálgico. Destes que coleciona discos de vinil e objetos raros. Meu outro fetiche são as revistas pulp. Inclusive publico há tempos uma revista local de suspense e horror chamada Lodo. Tipo de literatura nada tradicional no Brasil. Desde novo me interesso por histórias de vampiros, lobisomens e detetives.

Aliás ontem chegaram dois detetives aqui em casa. Vieram investigar mortes no bairro. Eles escolheram uma péssima noite para isso – noite de lua cheia. Não passava das dez quando chegaram. Um deles, o mais rechonchudo, ficou no carro. O outro tocou minha campainha eu mandei entrar:


“A porta está aberta! Pode entrar! Espere-me na sala que eu já vou!”


“Que escuridão da porra! O que aconteceu? Não pagou a conta?”- disse ele.


“Caiu a maldita chave da luz! Estou terminando de consertar aqui atrás e já chego aí. Estou com problemas desde a última noite de chuvarada.”


“Florestano. Seu nome é este né? Florestano Boaventura. Escritor daquela revista de contos sujos, a Lodo. Sempre quis te conhecer pessoalmente, man! Tenho várias Lodos lá em casa. Coleciono. Meu nome é Linhares. Detetive Linhares!”


“Que bom saber disso! Pode ficar a vontade detetive, tem café quente na térmica, se desejar. Aceita um charuto? Têm uma caixa aí na mesa.”


“Obrigado, man! Estas chuvas tem feito um estrago na cidade né? Quer ajuda aí com os fios? Entendo um pouco destas coisas, já fui eletricista.”


“Não será preciso, obrigado. Estão investigando o que, detetive? Algum maníaco a solta no bairro? O Uberaba está cada vez pior. O crack está violento por aqui. Esta droga é o diabo! Os caras andam feito zumbis. Não é mesmo? Ontem mesmo teve tiroteio ali pro lado do canal Belém.”


“Ué, parece que agora escutei sua voz de outro lado. Onde você está afinal? Estamos atrás de coisa pior, encontraram corpos humanos retalhados aqui na área. Parece coisa de uma fera ou chupacabras. Bestial o lance! Você não iria querer ver. Bem, ou gostaria. Afinal seus contos tratam disso, não é? Soube de alguma coisa? Ouve os vizinhos comentando? Você mora há quanto tempo aqui?”


O detetive sacou sua arma e carregou-a. Pelo som percebi que era uma Glock 45. Ele deve ter visto algo suspeito na sala. Tive que agir, revelando minha estética bestial. Levei menos de um segundo para desarmá-lo. Segurei-o pela garganta. Seu corpo foi prensado contra o teto. Não conseguia emitir nenhum som, muito menos para chegar aos ouvidos do comparsa lá fora. Tive que tomar cuidado para não arrebentar seu pescoço no meio. Poderia matá-lo. E isso era a última coisa que eu queria.


“Escute o que tenho a dizer, detetive. Se quisesse te ferrar já teria o feito quando pisou aqui dentro. Dez segundos eu precisaria para transformar você e seu colega balofo em comida de lobisomem. Se eu poupe-os é porque quero ajudar. Portanto, fique bem pianinho. Não adianta olhar para sua pistola, ela não será útil aqui.”


Arremessei seu franzino corpo contra o sofá. Ele caiu certinho, tipo desenho do Pernalonga. Levou um tempo para se recuperar. Peguei um charuto dentro da caixa escrito “Montecristo” e acendi usando um fósforo. A fumaça deliciosa dominou a sala escura – fica ainda mais bonita esboçada por luz de lua cheia. Linhares passava a mão no pescoço como se aliviasse a dor da esganadura. E emendei:


“Vocês estão certos quanto aos ataques. Há uma besta agindo lá fora. Mas não tenho nada a ver com isso. Como pode ver, consegui dominar a fera. Tive que me adaptar. O lado selvagem é atroz. Escrever foi minha redenção. Desenvolver o lado racional inibe a condição. Foi difícil no começo. Você não imagina quanto! A criatura que vocês procuram está no mesmo processo. Existem muitos por aí. Em todos os bairros. Sabe como é, quando estamos em temporada de aprendizado saímos mordendo todo mundo. São apenas corpos em movimento na escuridão. Seres guiados pelo cheiro.”


Linhares recuperou o fôlego e falou ainda ofegante:


“Precisamos deter esta fera. Ou ela fará mais vítimas. E outra, temos que fazer isso antes que a notícia chegue nos ouvidos dos jornalistas. Como posso confiar em você? E se estiver mentindo? Terei que investigar a sua casa!”


“Você não está em condições de impor alguma coisa, detetive...”


Foi quando ouvimos os tiros lá fora. Olhamos pela janela e vimos Fúlvio Lopes de pé, com a porta do Santana Quantum aberta atirando em direção ao breu. Corremos na mesma hora para ajudá-lo. Antes arremessei um pente de balas de prata a Linhares, que me agradeceu.

 “Você vai precisar disso.” – disse a ele.


Poucos segundos bastaram para encontrarmos Lopes caído no chão, com o pescoço ferrado. A criatura se alimentava da carne do detetive quando saltei sobre ela. Era muito forte, tivemos um embate cruel. Linhares correu para acudir o companheiro, enquanto eu despendia fortes murros na face do monstro. Ele era brutal, pelagem ruiva de coiote e dentes afiados como navalha. Não havia nenhum indício de racionalidade em seu corpo. Num momento consegui segurá-lo pela mandíbula. Tentei arrebentar sua boca, abrindo ao contrário, mas ele me arremessou longe. Eu costumava ser mais forte quando jovem. Não tenho mais idade. Foi quando Linhares acertou-lhe um tiro de prata bem no meio do peito. O pobre agonizou por alguns segundos e morreu aos nossos olhos. Todo lobisomem, depois que morre, volta a sua forma humana.


“Como está seu colega? Ainda vive?” - perguntei.

“Sim, mas acho que a maldição o tocou.”

“Vamos levá-lo para minha casa. Te ajudarei com os curativos.”

“Ele vai virar isso... que você é? Digo...”

“Só na próxima lua cheia. Arraste-o para dentro. Darei um jeito no cadáver.”


Linhares fez o que eu sugeri, enquanto eu aproveitei para matar a fome. Nunca deixo restos. Isso é coisa de amador. 



(continua...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário