quarta-feira, 4 de maio de 2011

Sandrinha Lovecraft

texto e ilustrações por Fabiano Vianna


Parte 1



Dezenove horas. O cheiro de rato frito da pastelaria chinesa invade o escritório de Linhares e Fúlvio Lopes. Os dois detetives dividem uma saleta mequetrefe no décimo terceiro andar do edifício Asa, no coração do centro velho de Curitiba. O prédio fica na Praça Osório, na intersecção das ruas Cruz Machado, Ermelino de Leão e Alameda Cabral. Esta área é dominada por pastelarias chinesas, lanchonetes de lanches rápidos e botecos oldschool. O mais conhecido é o Stuart, que fica na esquina da Alameda Cabral. Local inclusive muito freqüentado pelos detetives, onde se atracam em deliciosas porções de carne de onça, as mais famosas e clássicas da cidade. A sala dos dois é pequena, espaço único com banheiro. No vidro jateado da porta de vidro está escrito Lopes & Linhares detetives associados. A disposição dos nomes já foi motivo de brigas homéricas entre os dois, mas diz a lenda que Fúlvio, vulgo Lufus, estava presente no escritório quando os caras foram executar o serviço, e por isso, definiu que o nome dele viria na frente. O que é, na verdade, uma ilusão, porque lendo de dentro para fora, é o nome de Linhares que vem antes. No momento os dois estão sentados em suas devidas mesas, enquanto esperam o telefone tocar, ou o dia acabar. Vida de detetive é isso, esperar, esperar... Quando não estão seguindo alguém, estão esperando algo acontecer, na frente de uma casa, ou dentro do carro, comendo merda e fumando cigarro. Fúlvio, com atadura e gaze no pescoço, lê uma revista de turfe enquanto Linhares abre uma latinha de Skol. Há uma semana, Lufus foi fodido por um lobisomem enquanto investigavam o bairro do Uberaba, por isso ainda está com a gaze. Ainda não está cem por cento, mas pelo menos os delírios diminuíram. De repente Lufus, que anda com o olfato super desenvolvido, sente um odor ainda pior que o da pastelaria, subindo pelas escadas do edifício.
“Tá sentindo este cheiro, Linhaça? Isso me lembra...”
O fedor de charuto invade a sala tipo desenho do Pernalonga, atravessa a fechadura, passa por baixo da porta, flutua até o nariz de cada um deles e dá um soco com forma de luva de boxe. A silhueta de Florestano Boaventura, o velho escritor que os dois conheceram mês passado na ocorrência do Uberaba, surge na porta de vidro translúcida, usando camisa florida, paletó risca de giz e chapéu Panamá. Com charutaço aceso na boca, verdadeira bomba de fumaça fedorenta, abre o trinco e entra na sala.
Sabia que você tava na área Flores! Seu perfume é característico!”
“Aliás, perfume cubano dos melhores, Linhaça meu velho!”
“Senta aí. O que faz por estes lados? Acabou o teu estoque de fumo no Uberaba?”
“Também isso, mas na verdade vim para lhes contar uma coisa. Antes de qualquer coisa, como você está, Lufus meu rapaz?” – Florestano anda até a mesa de Lufus e o abraça com carinho.
“Estou bem melhor, bicho. A cicatriz já está quase sumindo por completo. Mas passei umas noites de cão! Literalmente, se é que você me entende.”
“Está fazendo chá com as folhas de Acônito e passando a pasta na cicatriz?”
“Com certeza. Ô chazinho amargo da porra!”
“Diga lá ô fumacento, lobo do lamaçal, que maus augúrios você nos traz?” – pergunta sarcasticamente Linhares.
“Veja esta menina.” – joga a fotografia sobre a mesa de madeira escura repleta de gibis do Fantasma, latinhas de cerveja, envelopes pardos e revistas pulp.
“Conheço ela. Sandrinha Lovecraft . Gostosíssima. Trampa ali nos arredores do Big Brother, Dentadas Pub e Gina´s Beef..”
“Isso mesmo. Na verdade ela é uma jornalista, infiltrada no meio das putinhas da região. O verdadeiro nome dela é Larissa. Conheci-a num evento de literatura fantástica em Porto Alegre. Super bacana a menina. Eu publico as matérias que ela escreve na Lodo. Escreve bem a béça.”
“Hmm! Veja só. Nunca imaginaria! Mas e o que aconteceu com a moça? Sumiu?”
“Pois é. Estou preocupado pra caramba. Sumiu sem dar notícias. Temo que esteja correndo perigo, sabe? O celular está desligado, ligo na sua casa e não atende. Sabe como é, o dia-a-dia naquela área é barra-pesada.”
“Porra! Só podreira! Pode deixar que vou dar uma procurada. Conheço todos os buracos imundos da Cruz Machado e arredores. E lembro bem da cara dela.”
“Se existe alguém nesta cidade que poderia encontrá-la é você. Eu falei com os pais dela, são de Paço Fundo. Estão muito preocupados.” 
Lufus dá idéia de descerem até a XV pra tomar um café. Florestano acha ótimo e diz que estacionou seu calhambeque bem na frente da Praça Osório. Dá para ver pela janela. Linhaça tira sarro da relíquia, pergunta se aquele museu pode ser chamado de veículo. Depois das risadas, os três descem e caminham até a boca maldita. Está uma noite fria.



Parte 2



Dez da noite. Lufus, Linhares e Celso Rodrigues, companheiros de investigações, estão no Gina´s Beef a espera de um churrasco de alcatra mal passado com fritas, arroz, farofa e ovo frito. Bifes a cavalo. O churrasco do Gina´s é famoso. Concorrente do Gato Preto, que fica na mesma rua, Ermelino de Leão, perpendicular à Cruz Machado. Uma quadra depois. Refeição salvadora na madrugada. Fica aberto direto até o outro dia. Totalmente freqüentado por boêmios, nighters, vampiros e arredores. Pessoal sai das festas, inferninhos, puteiros e vai pra lá. Ambiente transitório obrigatório. Não há restrição de credo, raça ou condição. É permitido até fumar. Enquanto você saboreia a comida, garotinhas de vida fácil cruzam o salão. Bundas bombardeadas, moçoilas de pernas tortas. Criaturas noturnas, vampiras translúcidas. Você pode escolher se come ou contempla. As putinhas sentam-se à mesa, trocam idéias, contam causos. Vestidas de tigres, onças, panteras. Felinas diáfanas. É divertido pra cacete. E a casa possui também um sistema de Disk-churrasco, com moto-bitches sadomazoquistas. O tempo todo tá saindo moto com entrega de disk-churrasco. Motoqueiras decotadas, com o bundão em calça justíssima arrebitadas nas motos. Tem também os fortões para os viados e para as tiazinhas, com figurino estilo Tom Finland. É só ligar, pedir a carne, e elas, ou eles entregam. Se quiser serviço de sexo, o valor é acrescido. Não conheço outro lugar no mundo que ofereça isso. Entregadoras em roupas de couro justas. Você escolhe no cardápio por nome e tipo de carne que quer comer. Picanha, alcatra, lombo, maminha. Morena, indiana, japonesa. Lenhador, policial, marinheiro. Fantasias fetichistas. E por aí vai. Coisa de louco.
Gina, a dona do moquifo, fica no caixa. Ela era puta também, antes de ser empresária. Não sei se quem era puta deixa um dia de ser puta. Ela deve ainda fazer uns programinhas com os caras das antigas. O Flores, por exemplo, já deve ter encostado suas patas por ali. Gina é assessorada por uma gerente de terno e gravata, que dá voltas no salão levando de vez em quando recados para as garotas e atendendo as mesas. Três garçonetes bondage vestidas com corset e cinta liga servem as carnes e reza a lenda que o churrasco lá dentro é preparado pelo filho monstro de Gina. Parece que o guri é deformado, coisa feia pra danar. Nunca sai lá de dentro, de perto da fornalha. É ele que prepara as carnes, cuida da churrasqueira, todos os dias. Os acompanhamentos são feitos na cozinha, mas não sei qual é a qualidade higiênica por lá. Não deve ser das melhores, com certeza.   
Agora Lufus começa a sentir um cheiro estranho vindo da cozinha. Entram garotos e meninas, tráfego intenso rotatório. Nenhum sinal de Sandrinha Lovecraft. Um músico cego toca Odair José no teclado para os casais que se aventuram nuns passinhos. As paredes da casa são revestidas de azulejos florais e espelhos de lanchonete anos trinta. Linhaça diz que a guria costuma freqüentar este salão, e pergunta pro Celso se ele trouxe a máquina fotográfica para registrar ocorrências. Celso tira um trambolho de metal de dentro do bolso e diz que é uma câmera.
“Eu disse para você trazer uma câmera fotográfica, não um aparelho retroprojetor!”
“Porra, bicho. Esta é uma Olympus 35 mm compacta modelo 1977! Meu verdadeiro xodó. Precisa ver as fotos que esta tiro com esta máquina. Ela é silenciosa pacas. Muito melhor que qualquer digital moderna. Nunca deixei de fotografar com filme e papel. Sou um cara clássico!”
“Puta que pariu! Cara, guarde esta coisa dentro do bolso logo, antes que alguém fique puto. Nunca te contaram que é tenso fotografar no puteiro? Quando eu falei para você trazer uma câmera, achei que você tivesse uma microcâmera de agente secreto. Isso não é máquina de detetive, pô!”
“Prometo ser discreto, cara. Você vai ver. Tenho prática! Anos fotografando amantes e cenas totalmente proibidas com esta belezinha.”
“Raymond Chandler diria que você é tão discreto quanto uma formiga num manjar de côco.”  
Lufus ri e diz que vai dar uma volta. Celso e Linhares reclamam, avisando que o churrasco vai chegar logo. Mas Lufus quer dar uma averiguada na redondeza do bar. Diz que este é o momento perfeito, vão achar que foi no banheiro. Lufus levanta-se e sai, passando pelo segurança troglodita na porta. Assim que pisa na calçada de fora, o churrasco é servido na mesa dos dois. Linhares e Celso resolvem comer mesmo sem Lufus.
“Azar o dele. Podia ter ido depois.”
Lufus dá a volta na quadra, no sentido contrário à Cruz Machado. O sobretudo opaco voa contra o vento frio e úmido que bate contra seu largo corpanzil. A noite ferve na passarela zumbi-week. Crackeiros são tipo mortos-vivos; sofrem para se equilibrar nas pernas. Coletam qualquer coisa que possa ser transmutada em pedra. Vão andando em coreografia thriller Michael Jackson, movendo os braços em movimentos peristálticos. Assaltando turistas. Pescam na Osório e arredores para vender na Cruz Machado. Circo de horrores. Lufus ignora e guia-se pelo cheiro. Descobre o local de saída das moto-bitches, na rua posterior, numa porta de garagem de metal grafitada. Fedor de carne podre. As motos vão saindo vuadas. Trânsito frenético. Motoqueiras de disk entrega siliconadas. Motoboys bondage fantasiados. Lufus vai entrando, com casacão detetive esvoaçante. Sente cheiro de cadáver no miolo de quadra. Motos estacionadas, furgões paralelos. Esconde-se atrás de uns entulhos para averiguar o que acontece. Lixo cheio de peças de churrasco, grelhas, espetos, plásticos fedorentos, latinhas e garrafas. Rodeado por imensas moscas verdes. Lufus anda sensível para sentir odores. O cheiro putrefato do lixo da Gina´s o invade até as entranhas. É difícil manter o foco.

Parte 3  



Linhares e Rodrigues se atracam no filézão jurássico com fritas e farofa. Carne mal passada, bem servida, como eles gostam. Sangue escorrendo no prato e cerveja para acompanhar. Encharcam as batatas fritas num morrinho de maionese no prato de metal e mandam ver. O churrasco torna-se o evento principal, tanto que Linhaça esquece de procurar Sandrinha Lovecraft pelo salão. Nem olham para os lados. Enquanto comem, entram gaiatos e garotas. O movimento no Gina´s é intenso. Gigolôs, malandros, cowboys e putinhas relaxadas. Tudo transmutado em cifrões na conta da muié que dá nome ao moquifo. Ela não sai do caixa, e segue a noite toda recebendo grana e devolvendo troco. Rodrigues conta para Linhares os detalhes do caso de Gorgonzola que investigou no começo do mês, depois Linhaça fala do envolvimento com lobisomens e Florestano Boaventura no Uberaba. “O que está acontecendo com esta cidade? Está parecendo cenário de Zé do Caixão”- comenta Rodrigues. 


“Curitiba virou esconderijo de anomalias e desajustados. Culpa desta neblina que nunca pára.”
Enquanto isso, no miolo da quadra, Lufus continua investigando os fundos da boate churrascaria, quando chega um furgão branco acelerado pelo portão das moto-bitches. O detetive esconde-se atrás dos entulhos e observa o movimento. Dois trogloditas retiram grandes sacos de plástico de dentro do veículo e levam até a porta dos fundos. Levam três sacos, um por um e os deixam no chão. Fazem o serviço e depois param para acender um cigarro, enquanto aparentemente esperam alguém aparecer pra pegar. Fúlvio Lopes, vulgo Lufus caminha em direção a eles. Os dois brutamontes observaram a silhueta larga de Fúlvio revelando-se na escuridão. Lufus fica de frente para eles, numa espécie de corredor com tijolos carcomidos, que conecta os fundos do Gina´s ao pátio onde o furgão está estacionado. “Qualé a tua mermão? Vaza que é assunto particular o que temos pra resolver aqui.” Apenas usando uma das mãos, Lufus arranca nacos de tijolos da parede e arremessa na cabeça do cara que falou. Enquanto este cai ensangüentado, o outro saca uma arma do coldre, mas logo é derrubado por Fúlvio que salta sobre ele feito um lobo. Enquanto pisa na cabeça do cara estilhaçando os miolos, usa um dos braços dele para atirar, com a própria arma, contra o companheiro que ainda se movia. 
O barulho do tiro causa alvoroço lá dentro do restaurante. Algumas pessoas saem vuadas, mas Linhares e Celso não se abalam. Continuam concentrados no churrasco. “Isso foi tiro?” “Ah, deve ter sido fogo de artifício. Me passa o arroz a grega!” 
Surge uma figura horripilante na porta do fundo. Com camiseta rasgada suja de carvão.  O sujeito é alto, forte e só possui um olho. Praticamente uns dois metros de altura. Trata-se de Bronte, o filho renegado de Gina, que cuida das churrasqueiras e assa as carnes do restaurante. O rebento nasceu deformado, fruto de relações obscuras da mãe, na época que ainda vivia nas ruas. Ele nunca é visto pelo povo do restaurante. Entra sempre pelos fundos e não sai da frente das fornalhas. Bronte está furioso. Olha para os companheiros mortos e avança, com um imenso espeto de churrasco nas mãos, para cima de Lufus. Com um potente chute, arremessa o detetive longe, fazendo voar a pistola que estava em sua mão. Lufus é jogado longe, seu corpanzil bate contra a frente do furgão. Bronte levanta-o segurando pela gola do sobretudo. O ciclope grunhe feito um monstro. Não sabe falar. Baba escorre pelos dentes tortos. Lufus está meio desacordado e é atingido mais uma vez por uma forte cabeçada do monstro. 
Lá dentro, finalmente, Linhares e Celso Rodrigues terminam de comer. Com as panças literalmente cheias, bebem a saideira e preocupam-se com Fúlvio. “Poxa, o Lufus não voltou até agora. Será que aconteceu alguma coisa?” “Vai ver encontrou uma putinha interessante na esquina e foi pra um dos motéis da Saldanha brincar.” “Hmm, bem provável mesmo.” Mas aí Linhaça sente algo estranho. “Cara, acho que preciso de um sal de fruta. Comi demais.” “Putz, eu também, bicho. Vamos indo, vou pedir a conta. Daí passamos numa farmácia e ligamos pro Lufus no caminho. O que acha?” “Boa!”
Lufus está caído com a cabeça arrebentada, mas estranhamente não sente dor. Está forte feito um animal. Olha em direção à roda do furgão e vê o espeto de churrasco de Bronte, jogado. Com uma das mãos alcança e consegue atingir o ciclope com um golpe no único olho. Enfia fundo, fazendo sangue borrifar na parede de tijolos. O monstro grita de dor enquanto, se contorcendo todo, tenta tirar o espeto do olho.  Lufus caminha até os pacotes plásticos e rasga um deles, revelando o corpo gélido de Sandrinha Lovecraft. Fúlvio lembra-se da foto mostrada por Florestano Boaventura no escritório. O ciclope enfim consegue arrancar o espeto do olho e está cego. Com o auxílio das mãos, foge em direção a rua, tateando as paredes, formando um rastro de sangue e dor. 
Linhares e Rodrigues estão numa farmácia comprando um arsenal de Engov, Enterofigon e sal de fruta. Pedem água para beber ali mesmo. Algo certamente não caiu bem na refeição. Rodrigues diz que não conseguirá chegar em casa à tempo, está quase se cagando. Linhares diz que ele também, e propõe usar o banheiro da catedral. “Porra, eu não vou cagar num banheiro sagrado”, diz Celso. “Prefere se borrar nas calças? Já usei uma vez o banheiro da catedral, é tranqüilo cara! Vamos lá, pois é o único lugar aberto que vamos encontrar no centro agora.” “Podemos voltar ao Gina´s.“ “ Já pensou o tamanho da fila que teríamos que esperar?” “Putz, é verdade. Vamos na catedral mesmo então. Será que é pecado fazer cocô na igreja?” “Os padres também defecam, Rodrigues! Além do mais sairemos purificados espiritualmente. Será uma limpeza física e espiritual. Ai... vamos logo. Tá difícil segurar.” “Vamos, vamos!” E os dois seguem, andando inclinados, pela Saldanha. Passam em frente ao restaurante onde foi filmado o “Estômago”, depois a Casa do Fumo e entram na Catedral pela porta lateral.  Atravessam a nave. Não há ninguém na igreja há esta hora. Linhares mostra o caminho, pois já fez isso outras vezes. Rodrigues segue atrás. Depois da sala dos coroinhas tem um corredor, e finalmente, o banheiro. Por sorte, um banheiro com duas cabines. Cada um entra numa, eles nem comentam mais nada. Já sentam descarregando tudo. RATATATATA! Tiroteio de merda - barulho de fuzil israelense. Uma verdadeira carnificina.

De volta ao fundo do Gina´s Beef. Fúlvio olha para o cadáver de Sandrinha Lovecraft, “singélida” e branca dentro do saco plástico escuro. Cena triste. Nem abre os outros pacotes, deduz que são outros corpos. Entra pelas portas do fundo do restaurante e depara-se com um rottweiler demoníaco preso numa corrente de ferro e latindo para ele feito um demônio. Trata-se de Cérbero, o cão de Bronte. Fica tão furioso com a presença de Lufus, que arrebenta a corrente e parte pra cima. Com um pujante uivo, Lufus o assusta. UAAAAARRRR!! Transforma o diabólico Cérbero num poodlezinho com rabo entre as pernas. CAIM CAIM... Sai corcundinha em direção ao pátio. Fúlvio depara-se então com uma situação bizarra. Centenas de corpos putrefatos por toda a sala. Pedaços de gente caídos por todo o canto. Por cima de mesas e bancadas. Braços na grelha. Labaredas gigantes criando uma sensação de calor sufocante. Também há muitos ossos jogados pelos cantos. Crânios, fêmures, costelas. Bronte era o churrasqueiro. Com certeza a Gina assa carne humana para os clientes comerem. Talvez para economizar, talvez para sumir com os corpos. O cheiro é quase insuportável. Lufus fica tonto e quase apaga. Há outros sacos plásticos como aqueles lá dentro, empilhados numa mesa industrial. Fúlvio pega o celular num dos bolsos, quase não consegue enxergar os números. Está tudo rodando e desfocado. Sua bastante, tira o casaco. Por sorte, tem o coronel Tavares na memória e liga. “Tavares, a casa a caiu! Manda reforço aqui pro Gina´s Beef que a situação é braba! Manda peritos, especialistas, o escambau. Manda o Mac Taylor, Grissom, CSI Miami todo que o troço é feio. Você não vai acredit... Antes de completar a frase, desmaia. O corpanzil de Lufus cai sobre o piso de concreto cru sujo de sangue. No celular ainda ligado numas das mãos, grita Tavares: “Fúlvio! Está tudo bem? Fúlviooo!?”
A bomba fétida de Linhares e Rodrigues domina toda a igreja. Uma senhorinha que acende vela na sala de promessas sente o fedor, faz o sinal da cruz e sai rapidamente pela porta principal. De frente para as cabines do banheiro dos coroinhas, por baixo das portas, estão os pés dos detetives, com calças arriadas até o calcanhar. Um com sapato preto e o outro usando allstar.


segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Lobisomem do Uberaba (Parte 1)

por Florestano Boaventura
ilustração: Daniel Gonçalves 

            O lobisomem do Uberaba sou eu. Vivo a mais de quarenta anos aqui no bairro.  Eu não sou o único, porém se você perguntar a qualquer pessoa nas redondezas, eles só vão lembrar de mim. Vão te confirmar que eu sou o lobisomem do Uberaba. Outros aqui foram tocados pela maldição, porém vivem feito animais por aí, escondidos nos matagais, caçando nas margens do Rio Belém, alimentando-se de zumbis andarilhos. O Uberaba está dominado pelo tráfico, infelizmente, como outros bairros da cidade. Apodrecendo de dentro pra fora. Zumbis do crack vagam pelas ruas à noite e são vítimas fáceis. No começo o “Ubera” era uma vila pacata, lembro-me como se fosse hoje. Só o clube Nikkei trazia pessoas para estes lados. Uma paz oriental absoluta. Hoje a cidade cresceu e nem o aeroporto Afonso Pena está tão longe mais. Mesmo assim ainda gosto daqui, conheço todo mundo. O pessoal da Magia do Pão, o padre da igreja São Paulo, os freqüentadores do clube dançante Bola de Ouro... Acostumei com eles e eles se acostumaram comigo. Virei até personagem. Os garotinhos da escola Alfredo Parodi prestam homenagem todos os anos. Fazem desenhos, histórias em quadrinhos, tiram foto. Uma vez por ano, em noite de lua cheia, eu vou até lá e participo da festa junina. Sou o lobisomem que ataca o noivo no momento do casamento, depois levo tiro do pai do sujeito. É bem divertido! O centro tem o Oilman e o Uberaba me tem. Conquistei a liberdade de sair transformado, de vez em quando. Posso descer numa boa até a Salgado Filho pra comer um prensado ou beber uma gelada no Armazém Santana. As pessoas gostam de mim, não sentem mais medo. Sabem que não saio mordendo ninguém. Não troco um bom churrasco por um pescoço duro nem a pau. Os tempos são outros, meus dentes andam frágeis, mas na real ainda vejo o Uberaba como a vila serena de outrora. Acostumei com o som rasante dos aviões, voando baixo em noites de céu aberto como a de hoje – noite atípica, sem bruma.

Estou sentado na minha mesa de trabalho habitual. Escrevo numa velha Remington, iluminado pela luz da lua cheia que invade a sala pela janela. O vento sopra em rajadas violentas, balançando a placa da coca-cola da padaria perto de casa. Meus sentidos ficam ainda mais aguçados quando estou transformado. O uivo do vento me é inspirador. Não tenho nada contra tecnologia ou computadores, é que gosto do som das teclas das máquinas de escrever. Tá bom, admito que sou um velho lobo nostálgico. Destes que coleciona discos de vinil e objetos raros. Meu outro fetiche são as revistas pulp. Inclusive publico há tempos uma revista local de suspense e horror chamada Lodo. Tipo de literatura nada tradicional no Brasil. Desde novo me interesso por histórias de vampiros, lobisomens e detetives.

Aliás ontem chegaram dois detetives aqui em casa. Vieram investigar mortes no bairro. Eles escolheram uma péssima noite para isso – noite de lua cheia. Não passava das dez quando chegaram. Um deles, o mais rechonchudo, ficou no carro. O outro tocou minha campainha eu mandei entrar:


“A porta está aberta! Pode entrar! Espere-me na sala que eu já vou!”


“Que escuridão da porra! O que aconteceu? Não pagou a conta?”- disse ele.


“Caiu a maldita chave da luz! Estou terminando de consertar aqui atrás e já chego aí. Estou com problemas desde a última noite de chuvarada.”


“Florestano. Seu nome é este né? Florestano Boaventura. Escritor daquela revista de contos sujos, a Lodo. Sempre quis te conhecer pessoalmente, man! Tenho várias Lodos lá em casa. Coleciono. Meu nome é Linhares. Detetive Linhares!”


“Que bom saber disso! Pode ficar a vontade detetive, tem café quente na térmica, se desejar. Aceita um charuto? Têm uma caixa aí na mesa.”


“Obrigado, man! Estas chuvas tem feito um estrago na cidade né? Quer ajuda aí com os fios? Entendo um pouco destas coisas, já fui eletricista.”


“Não será preciso, obrigado. Estão investigando o que, detetive? Algum maníaco a solta no bairro? O Uberaba está cada vez pior. O crack está violento por aqui. Esta droga é o diabo! Os caras andam feito zumbis. Não é mesmo? Ontem mesmo teve tiroteio ali pro lado do canal Belém.”


“Ué, parece que agora escutei sua voz de outro lado. Onde você está afinal? Estamos atrás de coisa pior, encontraram corpos humanos retalhados aqui na área. Parece coisa de uma fera ou chupacabras. Bestial o lance! Você não iria querer ver. Bem, ou gostaria. Afinal seus contos tratam disso, não é? Soube de alguma coisa? Ouve os vizinhos comentando? Você mora há quanto tempo aqui?”


O detetive sacou sua arma e carregou-a. Pelo som percebi que era uma Glock 45. Ele deve ter visto algo suspeito na sala. Tive que agir, revelando minha estética bestial. Levei menos de um segundo para desarmá-lo. Segurei-o pela garganta. Seu corpo foi prensado contra o teto. Não conseguia emitir nenhum som, muito menos para chegar aos ouvidos do comparsa lá fora. Tive que tomar cuidado para não arrebentar seu pescoço no meio. Poderia matá-lo. E isso era a última coisa que eu queria.


“Escute o que tenho a dizer, detetive. Se quisesse te ferrar já teria o feito quando pisou aqui dentro. Dez segundos eu precisaria para transformar você e seu colega balofo em comida de lobisomem. Se eu poupe-os é porque quero ajudar. Portanto, fique bem pianinho. Não adianta olhar para sua pistola, ela não será útil aqui.”


Arremessei seu franzino corpo contra o sofá. Ele caiu certinho, tipo desenho do Pernalonga. Levou um tempo para se recuperar. Peguei um charuto dentro da caixa escrito “Montecristo” e acendi usando um fósforo. A fumaça deliciosa dominou a sala escura – fica ainda mais bonita esboçada por luz de lua cheia. Linhares passava a mão no pescoço como se aliviasse a dor da esganadura. E emendei:


“Vocês estão certos quanto aos ataques. Há uma besta agindo lá fora. Mas não tenho nada a ver com isso. Como pode ver, consegui dominar a fera. Tive que me adaptar. O lado selvagem é atroz. Escrever foi minha redenção. Desenvolver o lado racional inibe a condição. Foi difícil no começo. Você não imagina quanto! A criatura que vocês procuram está no mesmo processo. Existem muitos por aí. Em todos os bairros. Sabe como é, quando estamos em temporada de aprendizado saímos mordendo todo mundo. São apenas corpos em movimento na escuridão. Seres guiados pelo cheiro.”


Linhares recuperou o fôlego e falou ainda ofegante:


“Precisamos deter esta fera. Ou ela fará mais vítimas. E outra, temos que fazer isso antes que a notícia chegue nos ouvidos dos jornalistas. Como posso confiar em você? E se estiver mentindo? Terei que investigar a sua casa!”


“Você não está em condições de impor alguma coisa, detetive...”


Foi quando ouvimos os tiros lá fora. Olhamos pela janela e vimos Fúlvio Lopes de pé, com a porta do Santana Quantum aberta atirando em direção ao breu. Corremos na mesma hora para ajudá-lo. Antes arremessei um pente de balas de prata a Linhares, que me agradeceu.

 “Você vai precisar disso.” – disse a ele.


Poucos segundos bastaram para encontrarmos Lopes caído no chão, com o pescoço ferrado. A criatura se alimentava da carne do detetive quando saltei sobre ela. Era muito forte, tivemos um embate cruel. Linhares correu para acudir o companheiro, enquanto eu despendia fortes murros na face do monstro. Ele era brutal, pelagem ruiva de coiote e dentes afiados como navalha. Não havia nenhum indício de racionalidade em seu corpo. Num momento consegui segurá-lo pela mandíbula. Tentei arrebentar sua boca, abrindo ao contrário, mas ele me arremessou longe. Eu costumava ser mais forte quando jovem. Não tenho mais idade. Foi quando Linhares acertou-lhe um tiro de prata bem no meio do peito. O pobre agonizou por alguns segundos e morreu aos nossos olhos. Todo lobisomem, depois que morre, volta a sua forma humana.


“Como está seu colega? Ainda vive?” - perguntei.

“Sim, mas acho que a maldição o tocou.”

“Vamos levá-lo para minha casa. Te ajudarei com os curativos.”

“Ele vai virar isso... que você é? Digo...”

“Só na próxima lua cheia. Arraste-o para dentro. Darei um jeito no cadáver.”


Linhares fez o que eu sugeri, enquanto eu aproveitei para matar a fome. Nunca deixo restos. Isso é coisa de amador. 



(continua...)